quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Você é um número

Se você não tomar cuidado vira um número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento - Tudo é número.
Se é dos que abrem crediário, para eles você também é um número. Se tem propriedades, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras tem número da cadeira.
É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas e Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.
Se você é comerciante, seu alvará de Localização o classifica também.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações também recebe um, como acionista de uma companhia. É claro que você é um número no recenseamento. Se é católico recebe um número de batismo. No Registro civil ou religioso você é numerado. Se possui personalidade jurídica tem. E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.
Nós não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto também é número.
A minha amiga contou que no Alto do Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao Posto de Saúde. E recebeu a ficha com o número 10. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pode ser atendida porque só atenderam até o número 9. A criança morreu por causa de um número. Nós somos culpados.
Se há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulseira com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pescoço, metálica.
E Deus não é número.

Clarice Lispector

Um comentário:

Mente Hiperativa disse...

Se você morre num incêndio, enchente ou desastre qualquer você é um número:

"23 pessoas morreram hoje de manhã num acidente blábláblá..."

Ninguém liga se era Maria ou Cláudia, se tinha filhos ou se cuidava da m~e idosa. Ninguém se preocupa se ela era cristã ou se estava construindo sua casa. Ela morreu e agora é só mais uma, é mais um número a engordar as estatísticas.

Isso é triste.

Me lembrei agora dos campos de concentração nazistas em que a pessoa "ganha" um número, e perde a toda a identidade pessoal. (Acho que é mais ou menos como a pulseira da guerra que se fala no texto).

Não tenho nada contra os números, mas tenho muito contra eles matarem pessoas.

Gostei muito do texto, e até me surpreendi por ser da Clarice, não conhecia esse texto dela.